sábado, 19 de junho de 2010

“No dia seguinte ninguém morreu”

Quem me conhece ou costuma visitar o blog, sabe que eu gostava muito do Saramago. Do seu texto, da sua postura, do seu andar calmo de quem carrega sobre os ombros todos os personagens que criou ao longo de uma vida. Nunca fui do tipo que tem muitos ídolos, que idolatra o outro, mas como resumiu uma amiga, “a relação entre leitor e escritor é muito complexa”. De certa forma, só hoje consegui ter noção disso. Não era apenas o gostar das histórias contadas, mas também a identificação com os personagens e a forma como são descritos. Ao ler seus livros, aprendi um pouco mais sobre os mistérios da vida e, como não poderia deixar de ser, me tornei uma pessoa melhor. Já contei aqui o encontro que tive com Saramago em 2008 num final de tarde em Lisboa. Meu peito se encheu de uma ansiedade misturada à euforia de vê-lo. Não fui até ele, não quis perturbar um senhor de mais de 80 anos com a minha curiosidade juvenil. Me contentei em observá-lo, de longe. Num caminhar lento, abraçado à Pilar, ele contemplava a cidade como todos que ali estavam, num dos tantos mirantes da cidade. Era mais um na multidão, não fosse pelo extraordinário talento literário sob aquele semblante de homem comum. Bom seria se a frase do título – que inicia e encerra um dos seus livros, As intermitências da morte – pudesse ser a aplicada a algumas pessoas, poucas e insubstituíveis. O mundo ficou hoje, sem dúvida, mais pobre em ironia, inteligência e boa literatura. E eu, triste e saudosa de um amigo.

“Como está escrito que não se pode ter tudo na vida, o corajoso velho deixará em seu lugar nada mais que uma família pobre e honesta que certamente não se esquecerá de lhe honrar a memória.” (As intermitências da morte, 2005, p.40)

18 de junho de 2010.

2 comentários:

Anônimo disse...

É verdade o mundo está mais triste e assim ficará.Não li muita coisa do Saramago,mas achava-o muito bom.A vida é engraçada mesmo,quando menos se espera a gente perde alguem que se pensava imortal,e de uma serta maneira será imortal atravez de seus livros.Lindo o teu texto.Bjos.

Fellipe disse...

"Raimundo Silva pousou a esferográfica, esfregou os olhos cansados, depois releu as últimas linhas, as suas. Não lhe pareceram mal. Levantou-se, levou as mãos aos rins e inclinou-se para trás, suspirando de alívio. Trabalhara horas seguidas, esquecera mesmo de jantar, tão absorvido pelo assunto e pelas palavras que às vezes lhe fugiam, que nem se lembrou de Maria Sara, esquecimento este que seria muito de censurar se a presença dela nele, salvo o exagero da metáfora, não fosse como a do sangue nas veias, em que realmente também não pensamos, mas estando lá e por lá circulando, é condição absoluta da vida. (...)"

Um trecho escolhido quase ao acaso, extraído do primeiro livro que li dele, História do Cerco de Lisboa.
Bjo