sexta-feira, 16 de abril de 2010

Caim, o contestador

“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós entendemos a ele.” (SARAMAGO, José. Caim, Companhia das Letras, São Paulo, 2009,p.88)

A história é antiga, está escrita na Bíblia: Caim matou seu irmão, Abel. Seu castigo: seguir errante pelo mundo com uma marca de Deus. José Saramago reinventa a narrativa do Antigo Testamento e conta os pormenores da vida de Caim, perdido no tempo e espaço, e a quem não parece certa essa história dos desígnios de Deus serem “inescrutáveis”. O livro leva o nome do protagonista.

A minha primeira e grande descoberta foi saber que Caim e Abel eram filhos de Adão e Eva! Há quem possa me chamar de ignorante, mas a palavra é essa mesma: ignoro a maior parte da história narrada no livro sagrado dos cristãos. A segunda foi saber que Caim matou o irmão “por não poder matar o Senhor”. O livro segue uma série de acontecimentos que servem de exemplos para demonstrar toda a insatisfação do filho do casal expulso do Jardim do Éden para com o Deus criador.

Quando do lançamento do livro, muito se falou e criticou a obra e seu escritor pela sua volta aos temas religiosos. Saramago já criou muita confusão com a igreja católica quando escreveu O Evangélio segundo Jesus Cristo, e agora não seria diferente. José Saramago nasceu num dos mais conservadores e católicos dos paises, Portugal. Foi com a leitura dos seus livros que comecei a entender o porquê de muitos portugueses “torcerem o nariz” para o ilustre escritor.

Ainda quando estava em Portugal – onde morei por quase dois anos – ouvi de um colega de estágio: “ Ah, este novo livro do Saramago é como todos os outros, já sabe-se o que vai acontecer. Nem terminei de ler.” Outros presentes concordaram com o comentário. A obra em questão era A viagem do Elefante, lançado em fins de 2008. Eu me mantive calada, ainda não os conhecia e não queria criar inimizades já nos primeiros dias. Mas fiquei bastante incomodada pela maneira como se referiam ao único Nobel de Literatura em língua portuguesa.

Não conheci muitos portugueses com a vocação de contestador de Saramago. Não se trata de uma generalização ou mesmo de uma ofensa, apenas compartilho minha experiência. Talvez seja mais uma explicação para a falta de apreço por parte de muitos conterrâneos à obra do escritor. O personagem criado pelo português, Caim, parece ter muito do seu criador: inconformado, questionador, indignado, provocador. Se permitir chamar ao Deus que todos temem de injusto, ciumento e malvado e também discutir com o Senhor sobre tudo aquilo que lhe parece cruel e incompreenssível , não é para qualquer um.

Muitos críticos disseram que Saramago estava predeterminado a polemizar. Talvez estivesse. Entretanto, não acredito que isso tenha interferido na qualidade literária do texto. Apesar de parecer uma narrativa densa por tratar-se de um texto com poucos parágrafos, diálogos entre vírgulas e nomes próprios em letras minúsculas, a leitura flui tranquilamente. As descrições dos desertos e paraísos, de passagens bíblicas conhecidas do senso comum, além do característico humor requintado, se traduzem numa narrativa atual, irônica e contestadora.

31 de dezembro de 2009

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